Resenha crítica da animação Divertidamente sob aspectos psicanalíticos
- Débora de Cássia Martins
- 28 de dez. de 2021
- 5 min de leitura
Essa é uma resenha crítica em base da animação americana intitulada Divertidamente, estreado em junho de 2015, com direção de Pete Docter (Wikipedia, 2020). Esse filme relata a história de Riley, uma garota de 11 anos que se muda de cidade com seus pais e começa a vivenciar intensamente suas emoções. O enredo do filme é visto sob a ótica das emoções de Riley: Inveja, Medo, Raiva, Alegria e Tristeza; sendo que a Alegria rege todo o desenvolvimento e percalços vividos em uma troca constante entre as emoções para assumir o Painel de Controle.
A animação trata de cinco emoções bases no desenvolvimento de Riley e de todos os personagens presentes: pai, mãe, amigos. São as emoções de inveja, medo, raiva, alegria e tristeza. Pensando na intensa pesquisa produzida pelo psicólogo Paul Ekman, citada no site Clue Lab (2018), as emoções universais – comuns a todos os seres humanos – são compostas em um total de sete que incluem às cinco já relatadas e mais as emoções da aversão e do desprezo. No filme tais características são assimiladas, parcialmente, pela Inveja que, a meu ver, ficou sobrecarregada com tantos traços distintos. Uma diferenciação das emoções poderia trazer mais riqueza de detalhes sobre a complexidade do ser humano. Contudo, ainda me questionei se essas emoções foram ocultadas por questões morais ou por causarem certo grau de repugnância no ser humano, podendo levar a uma aversão da animação.
Se a Inveja ficou sobrecarregada de características a Alegria tomou a cena por completo, exercendo a administração do Painel de Controle, regendo as outras emoções e tomando a frente de tudo – o que deixou o enredo saturado e, em alguns momentos, até irritante. Alegria por querer dominar tudo e achar a Tristeza um estorvo para Riley brigam, e em um acidente são arremessadas para fora da Sala de Controle. Na falta de ambas o caos se instala na Sala de Controle e nenhuma das outras emoções - Medo, Inveja e Raiva – sabem o que fazer. Essa supremacia da Alegria me mostra uma constante autoexigência do Superego – herdado dos pais - para ser/aparentar feliz, aparenta também o reflexo de uma sociedade (americana) que visa muito o prazer, o bem-estar, a supressão de qualquer aspecto de tristeza (que fica bem claro no filme) bem como uma fantasia social de que a criança só sente alegria, além de mostrar um aspecto mental de cisão das emoções – só a alegria tem vez no Painel de Controle – indicando um mecanismo da posição esquizoparanóide cunhado por Melanie Klein (Martino, 2015).
Alegria mostra um traço narcísico por deter o controle do Painel e por estarem associadas a ela todas as memórias bases de Riley. Tais memórias são criadas logo no início da vida de Riley e estão ligadas à vivência de fortes emoções positivas (Alegria de novo), o que permitiu a criação de uma estruturação da personalidade – a qual está ligada ao inconsciente (devido às bases estarem ‘flutuantes’). Riley aparenta ser uma criança feliz, é verdade. Porém, me questiono se a constante alegria dela não foi a causa dos conflitos que se sucederam. As experiências fortes que ela viveu foram sempre na ordem de emoções positivas – o que não, necessariamente, indica uma personalidade saudável – o que levou a uma anulação das emoções tristes. Como seria a estruturação da personalidade se houvessem fortes emoções tristes? Será que as bases criadas teriam em si alguma peculiaridade? Seriam deformadas? Quando seriam ativadas? Seguiriam a mesma lógica das emoções positivas?
Ambas lançadas para fora e longe da Sala de Comando, começa uma jornada para voltar até o Painel, enquanto Riley vivencia ambivalências e confusão de emoções e suas ilhas de personalidade são, aos poucos, levadas ao chão.
Elas encontram um Elefante, que era amigo imaginário de Riley na tenra infância, e que as ajudam no caminho de volta à Sala. O Elefante é da ordem da fantasia, do irreal, daquilo que está além do sensorial e que ao mesmo tempo abre possibilidade para a conversa e união de duas emoções antagônicas. Parece que na falta do controle e na aparente desordem ‘mental’ há ainda elementos que estão lutando por uma estruturação do ego, que há uma energia pulsional que conduz a um equilíbrio tensional.
Outro elemento freudiano é o Palhaço que dormia trancado em uma prisão situada numa depressão da mente de Riley, que podemos denominar pré-consciente, local onde o material ‘reprimido’ da consciência é levado. Alegria e Tristeza acordam o Palhaço, ideia que corrobora o postulado por Martino (2015) de que o ‘reprimido’ não fica no inconsciente, como dito por Freud, mas no pré-consciente, por poder vir à tona nas formas de angústias e por conter elementos tempo-espaciais. No desenho, há policiais que guardam a entrada da prisão, os possíveis mecanismos de defesa que impedem a passagem de conteúdo ansiógeno à consciência, e quando o oposto ocorre, há uma forte descarga de tensão na consciência – o que leva Riley a acordar do sono.
O inconsciente também está presente na animação. É um imenso depósito de tudo que coisa, memórias e lembranças. Tudo o que não tem serventia para a consciência vai para lá, mas que, por outro lado, sustenta as ilhas da personalidade – que a propósito, são mutáveis. Alegria, Tristeza e o Elefante caem lá e encontram na fantasia também – um carrinho inventado por Riley e o Elefante – uma maneira de sair voando. No entanto, o Elefante não entra no carrinho, desaparecendo no movimento de supressão do inconsciente. Essa cena tanto pode simbolizar o crescimento emocional de Riley – de que está deixando as coisas próprias de criança – como a integração dos aspectos fantasiosos (posição esquizoparanóide) indo em direção à vivência da realidade (posição depressiva). E o interessante é que essa cena acontece depois de Alegria ver Tristeza consolando empaticamente o Elefante, e eles se entendendo no choro. Isso produz uma mudança em Alegria que é acentuada com a ‘morte’ do Elefante (mais uma vez o Elefante como aspecto de integração).
Segundo Freud, a moralidade é herdada do próprio Superego dos pais que ocorre até os 6 anos de idade, em decorrência do Complexo Edípico (Zimerman, 2017). Na animação vemos o conflito entre id - quando Riley rouba sua mãe para comprar uma passagem de ônibus de volta para sua cidade de origem sem demonstrar nenhum receio - e superego - que ao ingressar no ônibus a culpa e o medo lhe sobrevêm e ela se arrepende do feito e volta atrás na decisão, indicando a introjeção do superego e da moralidade dos pais.
As experiências que a Alegria vive com a Tristeza muda a relação entre ambas. Alegria nota que se sentir Tristeza também faz bem, porquanto há o consolo e empatia. O fim do filme mostra Riley adentrando a posição depressiva e conseguindo elaborar seus objetos internos, tendo suas emoções integradas, sem rejeitá-las ou cindi-las – se formando um objeto total. Nesse cenário todas as emoções conseguem seu lugar no desenvolvimento saudável de Riley. Nada mais é só alegria ou só tristeza, todas as emoções fazem parte da experiência diária e é possível reconhecer a beleza de cada uma. Isso permite a criação de novas memórias bases, de novas ilhas de personalidade e a ampliação delas, bem como a extensão do Painel de controle. Agora é possível se extrair mais riquezas das experiências emocionais.
Embora tenha sido usado cinco emoções bases, o filme propicia muitas reflexões tanto a respeito dos processos mentais quanto a nível social. Há vários aspectos da teoria freudiana e kleiniana mostrando um desenvolvimento normal que culmina em uma integração egóica saudável. Tenho expectativas de que o segundo filme da série possa trazer tantos pensamentos quanto esse.
Referências
INSIDE out (filme de 2015). Wikipedia, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Inside_Out_(filme_de_2015)>. Acesso em: 23 de mar. 2020
Divertida Mente (Inside out). Direção: Pete Docter. Produção: Jonas Rivera.Walt Disney Pictures, 2015. 94 min, cor.
AS 7 emoções universais e sua expressão na face humana. Clue Lab, 2018. Disponível em: <https://clue-lab.com.br/2018/01/04/as-7-emocoes-universais/>. Acesso em: 23 de mar. 2020
MARTINO, Renato Dias. O livro do desapego. São José do Rio Preto: Ed. Vitrine Literária, 2015
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica, uma abordagem didática. São Paulo: Artmed, 2017. 477 p.
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