Uma sociedade falocêntrica que subjuga o infantil como produto do feminino
- Débora de Cássia Martins
- 28 de dez. de 2021
- 4 min de leitura
O falo é um símbolo do órgão reprodutor masculino que traz consigo uma ideia de poder construída ao longo dos anos da humanidade e que embasou a formação da nossa malha social enquanto uma hierarquia de poderes em que um domina e outro é subjugado. Historicamente vemos que esse poder está atrelado ao homem, enquanto a mulher e sua prole – e todos aqueles que destoam da ideia máscula e viril - é posta em repressão e tem sua identidade construída para obedecer e honrar o falo. Um dos elos mais fracos desse sistema é o infante como produto do feminino. Nascido em terras estranhas, sem nome, sem direito a uma identidade e com um corpo frágil e vulnerável ao desejo do gozo de quem detém o falo.
Na antiga Grécia o falo era cultuado como o poder gerador de vida, fecundidade e de boa sorte. Eles fabricavam falos e procissões (falafórias) em culto ao deus do falo – Príapo. No mito primevo de Adão e Eva vemos a concepção de que a criação fálica é perfeita, gerador da vida, enquanto que o não fálico – o castrado – cai nas garras de sua imperfeição e conduz todas as gerações subsequentes a sofrerem pelo erro de sua imperfeição. Ao castrado é requerido a obediência em nome da paz e da harmonia. A partir desses mitos foram se construindo muitos símbolos em torno do falo como o de fertilidade, sorte, gerador da vida e força para destruir coisas ruins. Essas associações ainda são visíveis em nossa sociedade falocêntrica, pois, mantemos em nossa psique a representação de um ideal fálico que concede ao seu portador o poder, o status social, a posse das riquezas e do domínio de manter sob seus pés todo aquele que desejar. Logo, se o falo é o lugar de prestígio e poder, quem não o possui sobra o lugar de subjugação. Historicamente esse lugar é destinado às mulheres, em que o direito de o homem exercer dominação sobre ela é considerado essência da masculinidade. A criança, enquanto produto do feminino, não se furta à dominação tendo um destino tão funesto quanto ao da mãe. Frágil, que depende de cuidados de um Outro, produzido por um feminino castrado, portanto imperfeito, a criança é sujeitada à força daquele que detém o falo. A criança não tem identidade diante dessa autoridade que lhe tira seu próprio corpo, deixando-a passível para o abuso. Sem identidade, sem corpo e sem palavras, o caminho que sobra é se sujeitar e crer que aquilo que lhe impõe é amor. O corpo-infantil-sem-nome é aposseado pelo falo e cunhado no campo do erótico. A menina é incentivada a ser o objeto desejado e o menino é quem vai desejá-la. Esse corpo é tomado como moeda de troca para o gozo do dominador em seu sentido estrito e em seu voyerismo, ostentando o corpo-infantil-sem-nome para outrem obter também seu gozo. O abuso sexual faz parte de uma dinâmica mais global. Ou seja, sempre se encaixa em uma dinâmica familiar de abusos, dominação, desprezo, mentiras, segredos, vinganças e batalhas históricas. [...]. Normalmente todo aquele que é fraco entra no sistema como dominado. Por isso, é frequente que, se uma criança foi abusada por seu padrasto, por exemplo, todos os irmãos tenham tido o mesmo destino. (GUTMAN, 2013, p.77) Retirar essa criança na escrita prévia de ser o objeto do gozo do outro é um trabalho que engloba muito mais questões que os direitos garantidos na lei – direitos esses que foram ampliados a poucos 30 anos por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente. É um trabalho que requer uma consciência social ampla e um olhar cada vez mais humanizado para a infância e também para sua mãe. É preciso, antes de tudo, atribuir a essa criança o lugar de sujeito de desejo que traz consigo marcas, gostos, quereres e uma singularidade indivisível, que ocupa um lugar no seio familiar e que tem seu espaço resguardado dentro de uma malha social que preza por sua integridade e por meios de se fazê-la pertencente ao seu grupo – não obstante as condições financeiras, físicas, raciais e étnicas desse infante. É necessário também que a sociedade pare de denegar à criança o direito a fala, é preciso que se retire a mordaça que sujeita a criança na penumbra do isolamento para lhe colocar como atuante diante daquilo que a machuca e fere sua dignidade. Que não se duvide daquilo que é proferido, que se atue diante dessa fala, que se investigue, que traga nome, cor, identidade para aquilo que é vivido sob os olhares - e com o consentimento - daqueles que a criança julga ser amada. Contudo, é importante salientarmos que o sistema patriarcal e fálico concorre a uma violência psíquica, física e moral também aos homens, aqueles que se detém no topo da hierarquia. O que importa é a dominação não obstante à demanda do sujeito que confere a ação. Os homens são também vítimas de um sistema que massacra em nome de status e poder, embora não sintam a dor dilacerante de uma criança. A eles também é preciso ser pensado um espaço dentro do social, um local para reinserção, para se pensar o abuso cometido e não, simplesmente, colocá-lo em um sistema prisional que vai corroborar para a perpetuação da ação. É preciso ir até a fonte e trabalhar para que água potável saia dela e o ciclo de violência se interrompa. Apenas pensando no conjunto é que poderemos dar um passo rumo a um sistema social mais coeso e menos violento, com mais dignidade ao infantil.
Referências GUTMAN, Laura. O poder do discurso materno: introdução à metodologia de construção da biografia humana. 1ed. São Paulo: Ágora: 2013
Comments